Nominal damages: indenização sem dano por violação de direitos fundamentais

Ao tratamos de responsabilidade civil no common law temos que desafiar convicções arraigadas no civil law. O termo alemão "schadensersatzrecht" (Lei da compensação) facilita a compreensão. A responsabilidade civil que herdamos no Brasil somente se aplica aos fatos jurídicos danosos que resultam em indenização de natureza compensatória (art. 944, CC). Já na "law of torts", as indenizações são dos mais variados tipos, nem sempre direcionadas à compensação de danos. A responsabilidade civil de berço inglês é flexível, compreendendo uma gama heterogênea de condenações pecuniárias que se presta a outras finalidades, tais como os punitive damages, restitutionary damages e, para aquilo que nos interessa neste texto, a categoria dos nominal damages.

Recentíssima decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos no caso Uzuegbunam v. Preczewski (19-968, Mar 8, 2021), trouxe à tona a funcionalidade contemporânea dos nominal damages na experiência das jurisdições do common law. 

Contudo, a diferença entre os dois remédios de gain-based damages está na forma como apura-se o quantum da obrigação de restituição e, primordialmente, nas próprias funções. Enquanto em restitutionary damages há reversão da transferência patrimonial entre as partes, no disgorgement há supressão da vantagem adquirida pelo réu com independência de qualquer translação de bens pelo autor. Pela primeira, beneficia-se o autor de uma quantia correspondente ao bem transferido ou subtraído do seu patrimônio. Pela segunda, suprime-se a vantagem que, sem correspondência com a utilização do patrimônio do autor, o réu obteve com a prática do ilícito3. 

"Edward Snowden violou a obrigação que assumiu com os Estados Unidos ao assinar documentos de confidencialidade quando foi contratado pela Agência Central de Inteligência e como funcionário terceirizado da NSA", disse Jody Hunt, procuradora-Geral assistente da divisão civil do Departamento de Justiça", segundo ela "a habilidade dos EUA de proteger informações sensíveis de segurança nacional depende do cumprimento de acordos de confidencialidade assinados por seus funcionários e contratados. Não permitiremos que indivíduos se enriquecem, às custas dos Estados Unidos, sem cumprir suas obrigações de revisão pré-publicação".

Em uma videoconferência em Berlim para promover seu livro, Snowden afirmou que por mais que tivesse assinado um acordo de confidencialidade para manter segredo, também jurou respeitar a Constituição dos Estados Unidos. O ex-analista da CIA enfatizou: "Você disse ao governo que não falaria com jornalistas. Você disse a eles que não iria escrever um livro, ao mesmo tempo, você fez um juramento para defender a Constituição e o segredo que te pedem para proteger é que o governo está violando a Constituição e os direitos das pessoas pelo mundo".

O fato é que, olhando par trás na história norte-americana, em nenhum momento foi questionada a legalidade de criminosos narrarem as suas próprias versões, algo que cabe dentro de sua liberdade de expressão, resguardada eventual pretensão de reparação de danos extrapatrimoniais ou mesmo as tutelas específicas do direito de resposta ou retificação em favor de quem se sinta ofendido pelo conteúdo levado a público. Nem tão pouco houve repreensão ao direito de escritores receberem lucros pela reprodução de estórias sobre assassinos, o que atrai e fascina muitos curiosos em todo o mundo.

Por conseguinte, quais seriam os antecedentes jurídicos que facultam ao Estados Unidos a prerrogativa de desapropriar Edward Snowden dos lucros obtidos com a venda de seu mais recente livro, sob o argumento de que se tratam de benefícios econômicos indevidos, auferidos da violação de um contrato de confidencialidade?

Como primeiro antecedente na common law, retornamos 50 anos no tempo. A inglesa Mary Bell tinha 11 anos quando foi considerada culpada pelo assassinato de duas crianças, em 1968. Posteriormente, ela cooperou com a escritora e historiadora Gitta Sereny para a elaboração do livro "cries unheard", na qual se divulgou a sua versão sobre os fatos. Posteriormente, a imprensa denunciou que Mary Bell havia recebido parte dos lucros com a venda de suas memórias. Em razão da celeuma, a legislação sobre o escopo das cortes criminais para o confisco dos produtos do crime foi ampliada, a fim de que se incluísse um remédio civil permitindo as autoridades a recuperação de ativos que se relacionassem com a conduta criminosa, proibindo-se que um homicida adquirisse qualquer benefício em consequência de seu comportamento ilícito.

Porém, o precedente inglês sobre a restituição por ganhos ilícitos foi o julgamento pela House of Lords4 do caso "Attorney General v Blake [2001]" que teve como objeto a autobiografia de um traidor. Em razão da especial natureza e relevância do seu serviço, um agente secreto britânico do M-16 havia assinado uma cláusula de confidencialidade com o Estado (Official Secrets Act contract), como parte fundamental de seu contrato de trabalho. Com base no contrato, como todos os agentes Blake prometeu à coroa britânica que não revelaria informações sobre o seu trabalho, dever cuja traição poderia mesmo custar a vida de colegas. Porém, anos mais tarde, em violação ao pactuado, redigiu as suas memórias com a finalidade de garantir uma polpuda aposentadoria. Não obstante uma ordem de prisão na Inglaterra, foragido na Rússia, narrou as suas atividades desleais contra a pátria5. 

Ao contrário do que ocorre nos ilícitos perpetrados contra a propriedade, no direito inglês os remédios normalmente disponíveis para as hipóteses de violação contratual consistem prioritariamente na compensação de danos e, acessoriamente, em uma tutela específica - specific performance ou injunction. Isto se explica pelo fato de que há uma certa tendência no direito inglês de se negar à violação contratual o caráter de ilícito. A quebra de um contrato não teria a mesma magnitude de uma ilicitude extracontratual ou mesmo de uma quebra de um dever fiduciário, sendo mesmo em alguns casos considerada economicamente eficiente e, portanto, justificada, desde que o demandante seja adequadamente compensado por qualquer perda econômica. A contrata a venda de mercadorias para B, porém as vende para C, que lhe ofereceu valor maior do que B. A quebra contratual não pode ser desestimulada por condenações baseadas em ganhos de A, pois a violação pode servir a uma dada função econômica. Nada obstante, isso nem sempre é verdade, pois temos que considerar custos que decorrem da violação que excedem os benefícios que dele resultam (contratos que o demandante B pode ter estipulado com terceiros e foi forçado a repudiar ou renegociar como consequência da quebra contratual de A)6. 

Contudo, no caso Blake, o procurador-Geral inglês obteve uma tutela específica para que a editora que publicou o livro direcionasse os "royalties" ao Estado. Pode-se indagar que o agente "Blake" violou um contrato, porém a responsabilidade ineludivelmente surgiu da prática de um ilícito. Isso é uma restituição por ganho ilícito em sede contratual, sem nenhuma relação com um enriquecimento sem causa pois a coroa inglesa não poderia ter criado qualquer conexão imediata com o ganho em questão. É evidente, portanto, que a única questão em jogo consiste em saber se essa quebra de contrato deu origem à restituição em vez do direito normal à indenização. Como bem colocou o julgador, Lord Nichols: "ao deferir condenações pecuniárias, a lei não se curva de forma subserviente ao conceito de compensação por danos mensuráveis financeiramente. Quando as circunstâncias demandam, a condenação pode ser mensurada por referência ao benefício obtido pelo infrator"7.

Com relação ao caso Snowden, há um precedente bem estabelecido da Suprema Corte, "Snepp vs. United States"8, justamente considerando que a expropriação dos rendimentos auferidos por Snowden não repousa tão somente em violação de obrigações contratuais, porém de deveres fiduciárias. No precedente julgado em 1980, ao aceitar um emprego na CIA em 1968, Snepp assinou um acordo com a Agência de que ele não publicaria nenhuma informação durante ou após seu mandato relacionado às atividades da Agência sem antes obter a aprovação da Agência. Snepp publicou um livro sobre as atividades da CIA no Vietnã sem antes enviar seu manuscrito à Agência para revisão. Segundo o tribunal, a Primeira Emenda não poderia socorrer Snepp pois ele havia violado a "constructive trust" entre ele e o governo. Isso foi especialmente significativo nesse caso, já que esse tipo de violação de um ex-agente prejudicou a capacidade da CIA de cumprir suas obrigações legais, comprometendo a segurança dos agentes do governo e do próprio Snepp.

Um negócio fiduciário se aparta de um simples contrato, pois enquanto neste as partes maximizam os seus próprios interesses, em um relacionamento fiduciário, a parte a quem se destinou poder e confiança (Snowden), deve atuar estritamente de acordo com os interesses do beneficiário, no caso os Estados Unidos da América, com base em sua posição em cargos de confiança especial, no qual negociava em nome da CIA e da NSA, recebia acesso regular a informações classificadas de segurança nacional e celebrava acordos de sigilo com ambas as agências. Por conseguinte, a violação a um fiduciary duty requer uma resposta jurídica mais incisiva do que um breach of contract.

Retornando a Inglaterra, o caso Blake ilustra a importância dos relacionamentos fiduciários. O beneficiário (ou principal), a quem se deve confiança, tem direito à lealdade obstinada por parte de fiduciário. Quando alguém falha em alcançar os mais altos padrões de comportamento esperados de um fiduciário, a violação do dever é uma forma de ilícito - mesmo que ele esteja agindo honestamente (que não foi o caso de Blake), devido à necessidade de controle dos poderes discricionários do fiduciário, induzindo-o a resistir à tentação de servir a si próprio ao invés do beneficiário. Uma medida judicial de restituição está disponível, pois uma pessoa em situação fiduciária não pode se colocar em uma posição onde seu interesse e dever conflitem, devendo priorizar o dever ao principal a seu interesse pessoal.

Destarte, um remédio baseado em ganhos indevidos somente será concedido como last resort se outros remédios forem inadequados no caso concreto (por exemplo, um remédio compensatório ou a tutela específica). No caso Blake, os remédios compensatórios não eram adequados porque a divulgação de informações não tinha valor de mercado (o dano não poderia ser mensurado) e, igualmente, não havia como aplicar tutela específica ou inibitória. Ademais, o demandante tinha um interesse legítimo em impedir as atividades lucrativas do réu e em dissuadir outros servidores de divulgar informações sigilosas. Esse é um caso de restituição por ilícito. Pertence ao regramento da violação contratual. Não tem nada a ver com enriquecimento sem causa. Se a coroa britânica não se dispusesse a pleitear a restituição por ganhos indevidos, jamais poderia ter criado qualquer conexão entre o seu comportamento e o ganho em questão. É evidente, portanto, que a única questão em causa consistia em saber se essa ilícita quebra de contrato daria origem a um direito à restituição, ou apenas ao tradicional direito à compensação de eventuais danos9. Por fim, a violação do dever foi cínica e deliberada, permitindo que o réu entrasse em um segundo contrato mais lucrativo (publicação do livro) em detrimento do primeiro contrato. Ao entrar no novo contrato, o réu eliminou a sua aptidão para cumprir o contrato com o reclamante10.

Posteriormente ao reconhecimento judicial da restituição por ganhos ilícitos em Blake, o desafio consistiu (e consiste) na individuação das áreas em que o remédio restitutório poderá ser aplicado. No próprio julgamento ficou claro que a restituição não poderia ser aplicada de forma permissiva, porém com parcimônia, apenas para colmatar lacunas do sistema nos casos em que a resposta compensatória deixaria a vítima em posição de desvantagem. De fato, em contraste com os ilícitos extracontratuais, sejam os da common law como os da equity, não há tradição no direito inglês de concessão de restituição por quebra de contrato. O ganho indevido para um réu de uma violação contratual é geralmente irrelevante para a quantificação da condenação. Em regra, o réu será obrigado a compensar o autor por sua expectativa (ou confiança) contratual - expectation damages - colocando-o tão próximo quanto possível na mesma posição em que estaria se não tivesse sofrido o ilícito, mas não para restituir qualquer lucro que poderia ter obtido a partir de sua quebra de contrato, ou mesmo para contabilizar quaisquer despesas economizadas com o recesso. Todavia, a doutrina inglesa que se ocupa da temática considera que a restituição por ilícitos não é incompatível com os princípios do direito das obrigações e nem que o seu campo de aplicação já tenha sido ocupado por outras respostas legais11.

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1 Precedente fundacional no direito constitucional inglês. Concerne ao direito de voto e desobediência a um servidor público. Lord Holt estabeleceu o importante princípio de que pode haver prejuízo na ausência de uma perda econômica (iniuria sine damno), pois o direito presume o dano, sendo suficiente a demonstração de que um direito foi infringido. 

2 Questão semelhante foi debatida em 2020 na Suprema Corte da Austrália em Lewis v Australian Capital Territory [2020] HCA 26 (5 August 2020) na qual o tribunal reconheceu que uma violação de direitos pode ser reivindicada pela via de nominal damages. Citando o precedente Ashby v White, Gordon J afirmou que "This appeal is concerned with the tort of false imprisonment, a form of trespass to the person. It is actionable per se, regardless of whether the victim suffers any harm. It does not require proof of special damage. That is unsurprising. The tort protects and, where necessary, vindicates a person's right to freedom from interference with personal liberty as a fundamental legal right.. A right to nominal damages, as one remedy, follows from that finding of liability. That award of nominal damages marks the fact that "there [was] an infraction of a legal right". There is then a question as to whether any other relief should be awarded to a particular plaintiff, in their own unique situation".

3 Com idênticos fundamentos, nominal damages também se aplicam em matéria contratual. A hipótese é rara, pois a maior parte das demandas por "breach of contract" envolvem alguma forma de perda econômica do demandante. Ilustrativamente, como hipótese de nominal damages na seara do inadimplemento, podemos citar com a Empresa A, que firma contrato com a Empresa B para fabricar 10.000 bonecos, em razão de sua notória especialização. Porém, naquele momento a Empresa A não tem a capacidade de fabricar bonecos e não revela o fato a empresa B. Ao invés disso contrata a empresa C para fabricar os bonecos a 1/3 do custo normal, obtendo grande lucro. Todavia, a Empresa B constata que já tinha 10.000 bonecos armazenados. Ao comunicar o fato à Empresa A, descobre que ela sequer manufaturava os bonecos. Embora a Empresa B não tenha sofrido uma perda financeira, a Empresa A claramente a enganou. A Empresa B pode ter a intenção de quebrar o contrato, mas isso não retira o fato de que a Empresa A formou o contrato com base em fraude. Nesse caso, mesmo com fundamento em uma relação contratual, a Empresa B poderia receber uma indenização nominal pela violação de sua confiança.

4 Churchill visitou Roosevelt em dezembro de 1941 e permaneceu em Washington até janeiro de 1942. No último dia da visita histórica de Churchill, 13 de janeiro, Roosevelt preparou uma surpresa para Churchill: ele convidou Louis Adamic e sua esposa Stella para jantar, antes de Roosevelt dar o livro "Two-Way Passage" para Churchill de autoria de Adamic com a recomendação de ler pelo menos a última parte. Na última parte do livro Two-Way Passage, Adamic ceticamente, discute as diferenças entre os britânicos e a visão americana potencial da ordem pós-guerra da Europa. Adamic apela aos EUA para que entrem na guerra mundial, mas não para ajudar a Grã-Bretanha, mas vice-versa, para que os Estados Unidos salvem a Europa do domínio britânico.

 

 

 


Artigo originalmente publicado em:

https://www.migalhas.com.br/coluna/direito-privado-no-common-law/342947/indenizacao-sem-dano-por-violacao-de-direitos-fundamentais

Nelson Rosenvald

Entusiasta do Direito com 30 anos de serviço no Ministério Público de Minas Gerais. Professor de Direito Civil, Mestre e Doutor pela PUC/SP. Com dois pós-doutorados, tornou-se professor visitante em universidades europeias. Seu trabalho acadêmico se reflete nas 17 obras de Direito Civil que publicou. Fundador e presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC).

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