Responsabilidade civil e jogos on-line: Diferentes nuances entre "game", "gamble" e "bet"

O desenvolvimento exponencial dos jogos on-line tem provocado não apenas transformações culturais e econômicas de alcance global, mas também desafios regulatórios que demandam uma análise técnica interdisciplinar para que se possa refinar a terminologia adotada em diferentes contextos jurídicos. Nesse panorama, a distinção conceitual entre os termos ingleses "game", "gamble" e "bet" assume papel central, em face das sutilezas semânticas que tais vocábulos apresentam e das repercussões normativas que suas definições carregam. Em português, a imprecisão terminológica muitas vezes resulta em interpretações ambíguas, o que dificulta a adequada aplicação do arcabouço legal, especialmente para a identificação de danos indenizáveis. Portanto, a compreensão acurada dessas expressões é fundamental para assegurar segurança jurídica e coerência regulatória.


O termo inglês "game" designa, no contexto dos jogos eletrônicos, um conjunto de atividades de natureza lúdica que podem ser competitivas ou recreativas. O jogo de videogame, enquanto manifestação interativa e tecnológica em ambiente computacional, consiste em uma experiência virtual estruturada por regras pré-estabelecidas, desafios progressivos e objetivos específicos, muitas vezes combinando elementos narrativos, audiovisuais e mecânicas de interação dinâmica. Tal forma de entretenimento digital se desenvolve em plataformas distintas, notadamente consoles dedicados - dispositivos projetados exclusivamente para a execução otimizada de jogos -, além de tablets, smartphones e computadores pessoais, portáteis ou não, cuja adaptabilidade permite a configuração personalizada de recursos gráficos e de desempenho. Essa dualidade de plataformas amplia as possibilidades de imersão e acessibilidade, atendendo a diversos perfis de jogadores, desde os mais casuais até os dedicados entusiastas que buscam desempenho técnico elevado e experiências complexas.

Diferentemente dos conceitos que envolvem apostas, os jogos eletrônicos não possuem, em sua essência, uma conexão direta com o risco financeiro. Trata-se, via de regra, da já citada diversão lúdica associada à experiência do entretenimento audiovisual imersivo. E, quanto aos "games", o ordenamento jurídico brasileiro avançou na regulamentação desse setor com a recente promulgação da lei 14.852/24, que institui o Marco Legal dos Jogos Eletrônicos1. Essa legislação não apenas delimita o escopo do que se enquadra como jogo eletrônico, mas também se propõe a dissociar essa categoria de atividades ligadas a sorteios ou apostas. Tal separação normativa é crucial para fomentar o desenvolvimento da indústria de jogos, sem sujeitá-la a equívocos que a aproximem das regulações restritivas aplicáveis aos jogos de azar.

Por outro lado, "gamble" refere-se a atividades nas quais o resultado é predominantemente condicionado ao acaso, como ocorre em cassinos, roletas ou outras modalidades tradicionalmente conhecidas como jogos de azar.

Para detalhar melhor o conceito, pode-se dizer que a loteria de apostas de quota fixa consiste em uma modalidade de jogo em que o apostador conhece previamente o valor do prêmio em potencial, determinado com base nas probabilidades associadas ao evento apostado (odds), como ocorre em apostas esportivas. Diferentemente dos cassinos, nos quais o resultado depende quase exclusivamente do acaso em jogos como roletas e máquinas caça-níqueis - proibidas no país -, a loteria de quota fixa envolve uma avaliação de risco e probabilidade, o que a afasta da definição clássica de jogo de azar. No Brasil, aliás, o jogo de azar é tutelado de forma restritiva no âmbito penal, sendo tipificado como contravenção pela lei das contravenções penais (art. 50, §3º, decreto-lei 3.688/41)2. Sob o prisma civil, a exploração ilícita de jogos de azar não gera obrigação contratual reconhecida pelo ordenamento jurídico, conforme disposto no art. 814 do Código Civil, embora não sejam desconsiderados os efeitos do jogo de azar como obrigação natural, salvo em caso de dolo ou se quem perde o valor no jogo ou aposta seja menor ou interdito.

Frise-se que o Brasil, em sua tradição jurídica, manteve por décadas uma posição proibitiva em relação a essas práticas, consideradas ilegais em grande parte do território nacional. A exceção sempre foi a Loteria Federal, regulamentada pelo decreto-lei 204, de 27 de fevereiro de 19673, que dispõe sobre a exploração e o controle das loterias no Brasil, e que não é uma modalidade de aposta de quota fixa. Esse decreto-lei estabelece que a União detém o monopólio sobre a exploração de loterias, incluindo a Loteria Federal, que é organizada e administrada pela Caixa Econômica Federal. Trata-se de um sistema de sorteios tradicionais em que o apostador adquire bilhetes predefinidos, e o prêmio é determinado pelo resultado do sorteio, sem relação com probabilidades específicas (odds) ou variáveis baseadas em eventos externos. Bem ao contrário, os bilhetes já possuem números e séries impressos, e o prêmio é fixo, não dependendo de uma análise de risco ou cálculo de probabilidades.

No entanto, a promulgação da lei 14.790/23 (conhecida como lei das bets) inaugurou um novo capítulo regulatório, ao permitir o funcionamento controlado das apostas esportivas no país4. Em síntese, essa legislação estabelece uma linha divisória entre as apostas legalmente reguladas e os jogos de azar convencionais, criando um ambiente jurídico mais flexível e propício à inovação econômica.

Logo, o terceiro termo que nos interessa para este texto é o vocábulo inglês "bet", que se refere a apostas que envolvem um acordo entre partes, no qual se arrisca dinheiro ou bens em troca de um possível ganho. Essa prática está usualmente associada a apostas esportivas, que, embora inicialmente reguladas pela lei 13.756/185, ganharam maior especificidade com a já citada lei 14.790/23. A regulamentação inclui tributações claras tanto para operadores quanto para apostadores, visando um equilíbrio entre desenvolvimento econômico e controle governamental para a observância de critérios específicos na concessão de licenças, na fiscalização das operações e na tributação.

A confusão semântica entre esses termos em inglês produz imprecisões, também, em português, sendo agravada por um histórico de legislações fragmentadas e interpretações demasiadamente amplas. Tal ambiguidade pode prejudicar tanto o desenvolvimento da indústria quanto a proteção dos consumidores, razão pela qual se propõe, neste ensaio, a adoção da designação "jogos on-line" como gênero do qual deriva a seguinte equivalência terminológica para suas três espécies: (i) "game" sendo traduzido como "jogo eletrônico"; (ii) "gamble" sendo traduzido como "jogo de azar"; (iii) e "bet" sendo traduzido como "jogo de aposta".

Naturalmente, os três contextos envolvem complexidades próprias que podem tornar desafiadora a intenção de tutelar e prevenir danos que possam emergir de sua indevida exploração.

Quanto à indústria de jogos eletrônicos, são relevantes os desafios relacionados à propriedade intelectual na internet, que pode desencadear práticas ilícitas e danosas como a pirataria de software. Além disso, outro ponto de atenção é a crescente relevância dos esportes eletrônicos, ou eSports, que têm gerado debates sobre seu enquadramento legal. Quanto a esse tema, a lei geral do esporte6 ainda não reconhece os jogos eletrônicos como esportes, o que limita o acesso a incentivos governamentais. Entretanto, a lei Pelé7 possui uma definição mais abrangente, o que abre espaço para interpretações favoráveis, e as duas leituras podem propiciar discussões sobre a exploração do trabalho alheio em contextos virtuais competitivos, com reflexos sobre o direito de arena e a proteção de dados pessoais desses "novos atletas", sem contar eventual vulneração infantojuvenil quando os envolvidos forem crianças e adolescentes vinculados a equipes que participam de competições de eSports.

Outro aspecto relevante é a discussão sobre microtransações e loot boxes voltadas ao público de tenra idade. Há anos, muitos especialistas questionam se essas práticas deveriam ser consideradas jogos de azar, devido ao seu potencial de incentivar gastos excessivos, principalmente entre jovens8.

Ademais, o crescimento acelerado do mercado das empresas de apostas esportivas (Bets) acarreta uma série de desafios e preocupações. Uma das questões mais discutidas é o potencial impacto social das apostas, especialmente no que tange à ludopatia9, ou seja, o vício patológico em apostas. No contexto esportivo, em que as apostas são legalizadas, não se deve confundir "bet" e "gamble", embora sejam percebidas características que podem induzir a comportamentos compulsivos, sobretudo em usuários vulneráveis. Programas de mitigação desse risco, como limites de aposta e ferramentas de autoexclusão, são frequentemente exigidos pelas autoridades regulatórias como parte das condições operacionais das empresas do setor, denotando a importância de parâmetros específicos de accountability.

Outra preocupação relevante refere-se à transparência e à integridade das competições esportivas, pois há receios de que o envolvimento financeiro massivo em apostas possa fomentar práticas ilícitas, como a manipulação de resultados (match-fixing), afetando a credibilidade dos eventos esportivos, que passam a ser influenciados pelos próprios atletas, cooptados por organizações criminosas com promessas de ganhos elevados para interferir na ocorrência de um evento passível de cômputo em sistemas de apostas. Nesse sentido, a regulamentação brasileira determina que operadoras de apostas esportivas cooperem com órgãos esportivos e de fiscalização para identificar e prevenir quaisquer indícios de fraudes.

Em um setor caracterizado pela elevada circulação de informações pessoais, transações financeiras e potenciais impactos sociais, adotar uma postura preventiva não é apenas desejável, mas imperativo. Essa abordagem envolve a implementação de medidas proativas10, como políticas rigorosas de proteção de dados pessoais, conformidade normativa contínua e mecanismos transparentes de autoexclusão para jogadores em risco.

A responsabilidade civil preventiva11 revela-se como um mecanismo imprescindível para salvaguardar a integridade tanto do mercado quanto dos jogos eletrônicos e das competições esportivas, mitigando riscos que possam comprometer sua legitimidade e estabilidade. No esporte, políticas direcionadas à prevenção de manipulação de resultados - prática que ameaça a essência do fair play - são cruciais para proteger a credibilidade dos eventos, elemento indispensável à continuidade e confiança nas operações de apostas. Logo, a inobservância de tais medidas de controle pode gerar não apenas o descrédito por parte dos apostadores, mas também danos reputacionais profundos e irreparáveis às empresas do setor e às entidades esportivas, comprometendo sua sustentabilidade institucional.

Em conclusão, a distinção entre "game", "gamble" e "bet" reveste-se de singular importância jurídico-regulatória, especialmente no âmbito das atividades on-line. Nesse contexto, a responsabilidade preventiva encontra-se plenamente alinhada aos preceitos contemporâneos de governança corporativa, que valorizam a ética organizacional, a transparência e a responsabilidade social como vetores fundamentais para o desenvolvimento sustentável. Antecipar riscos inerentes aos jogos on-line, por meio de medidas eficazes de controle e prevenção, transcende o simples cumprimento normativo, consolidando-se como uma estratégia que promove a estabilidade do mercado, harmonizando os interesses econômicos com a proteção dos direitos dos consumidores e a integridade das competições.

Assim, as recentes leis que tratam do tema devem ser elogiadas, mas ainda há vasta zona cinzenta no ambiente regulatório brasileiro, não se podendo prescindir de novos avanços para a preservação de direitos, para a proteção de grupos vulneráveis como crianças e adolescentes e para fortalecer a coesão e a legitimidade institucional em um ambiente regulatório cada vez mais complexo e interdependente.

1 BRASIL. Lei 14.852, de 3 de maio de 2024. Cria o marco legal para a indústria de jogos eletrônicos; e altera as leis 8.313, de 23 de dezembro de 1991, 8.685, de 20 de julho de 1993, e 9.279, de 14 de maio de 1996. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 6 maio 2024. Disponível aqui. Acesso em: 11 fev. 2025.

2 BRASIL. Decreto-lei 3.688, de 3 de outubro de 1941. Define as contravenções penais. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, RJ, 9 out. 1941. Disponível aqui. Acesso em: 11 fev. 2025.

3 BRASIL. Decreto-lei 204, de 27 de fevereiro de 1967. Dispõe sobre a exploração e controle de loterias. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 28 fev. 1967. Disponível aqui. Acesso em: 11 fev. 2025.

4 BRASIL. Lei 14.790, de 29 de dezembro de 2023. Dispõe sobre a modalidade lotérica denominada apostas de quota fixa; altera as leis 5.768, de 20 de dezembro de 1971, e 13.756, de 12 de dezembro de 2018, e a MP 2.158-35, de 24 de agosto de 2001; revoga dispositivos do decreto-lei 204, de 27 de fevereiro de 1967; e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 30 dez. 2023. Disponível aqui. Acesso em: 11 fev. 2025.

5 BRASIL. Lei 13.756, 12 de dezembro de 2018. Regulamentação das Loterias e Promoções Comerciais. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2018. Disponível aqui. Acesso em: 11 fev. 2025.

6 BRASIL. Lei 14.597, de 24 de julho de 2023. Dispõe sobre a organização e a prática do desporto, institui a lei geral do esporte. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 25 jul. 2023. Disponível aqui. Acesso em: 11 fev. 2025.

7 BRASIL. Lei 9.615, de 24 de março de 1998. Institui normas gerais sobre desporto e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 25 mar. 1998. Disponível aqui. Acesso em: 11 fev. 2025.

8 FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura; DENSA, Roberta. Para além das 'loot boxes': responsabilidade civil e novas práticas abusivas no mercado de 'games'. In: FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura; LONGHI, João Victor Rozatti; GUGLIARA, Rodrigo (coord.). Proteção de dados pessoais na sociedade da informação: entre dados e danos. Indaiatuba: Foco, 2021. p. 333-356.

9 MARQUES, Claudia Lima; MARTINS, Fernando Rodrigues; MARTINS, Guilherme Magalhães. Economia da atenção, gamificação e esfera lúdica humana: nova crise na proteção dos consumidores e os abusos das apostas e jogos on-line. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 156, ano 33, p. 183-197, nov./dez, 2024.

10 ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETTO, Felipe. Responsabilidade civil: teoria geral. Indaiatuba: Foco, 2024. p. 26-28.

11 VENTURI, Thaís Goveria Pascoaloto. Responsabilidade civil preventiva: a proteção contra a violação dos direitos e a tutela inibitória material. São Paulo: Malheiros, 2014. p. 201-202.

Artigo originalmente publicado em:

https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-responsabilidade-civil/424919/responsabilidade-civil-e-jogos-on-line-game-gamble-e-bet


 


José Luiz de Moura Faleiros Júnior

Doutorando em Direito Civil pela Universidade de São Paulo – USP/Largo de São Francisco. Doutorando em Direito, na área de estudo ‘Direito, Tecnologia e Inovação’, pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Mestre e Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia – UFU. Especialista em Direito Digital. Advogado. Professor.

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